segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Escaladoras do Sul nas alturas – Expedição Cordillera Blanca 2009

Por Luana Hudler

A expedição Cordillera Blanca 2009 foi bastante importante para as Escaladoras do Sul. Nesta viagem pudemos conviver mais e aprender a nos entrosar mais na escalada, que flui melhor quanto mais conhecemos nossos parceiros e parceiras, seus pontos fortes e fracos, os bons e maus humores, os desejos e objetivos de cada um. Na montanha, nos conhecemos mais a fundo e aprendemos uns com os outros.
Todas as nossas investidas, tentativas, fracassos e cumes alcançados nos proporcionaram muito aprendizado sobre o ambiente de alta montanha, sobre técnicas e logística, sobre amizade e companheirismo. Somamos muitos pontos positivos para nosso grupo que agora está um pouco mais experiente e com muita gana de encarar novos desafios.
Além das empreitadas com Dani e Dea na Cordillera Blanca, eu tive algumas outras experiências sem minhas companheiras. Experiências bem pessoais que me proporcionaram muito aprendizado também. Compartilho aqui um pouco dessas outras aventuras por aquelas montanhas espetaculares.

Campo Alto do Tocllaraju

Cordilheira dos Andes. Esta vasta cadeia de montanhas que atravessa nossa querida sudamerica fascina qualquer montanhista. É sempre um sonho poder visitar qualquer um dos países andinos, que encantam por seu povo, sua cultura, suas montanhas.
Apaixonada por alta montanha, fiquei muito animada quando Andrea teve a idéia de irmos novamente para a Cordillera Blanca, desta vez em expedição feminina. Já havia estado lá em 2008, quando tive minhas primeiras experiências com grandes glaciares e grandes altitudes e foi impossível não se apaixonar pelo lugar.
Estando lá pela segunda vez, fiquei com muita gana de tentar uma montanha mais alta, algo técnica, que me proporcionasse nova experiência.




Quebrada Ishinca


Assim, ocorreu que, quando chegamos na Quebrada Ishinca, estando de cara para o majestoso Tocllaraju, de 6034m de altitude, me bateu uma vontade irresistível de tentar escalá-lo.
Já havia subido o Urus e o Ishinca na temporada anterior e quando vi as equipes no campo base se preparando para subir o Toclla, aquilo começou a me dar tanta fissura que até me encordaria com alguém que tivesse acabado de conhecer. Comecei a conversar com algumas pessoas, tentando pescar se havia possibilidade de me encordar com alguém. Um campamentista de uma expedição comercial me disse que seria possível encontrar parceria no campo alto, que haviam subido um guia com um único cliente e que talvez eles me aceitassem na cordada. Pensei, não custa tentar. Aliás, custaria no máximo a caminhada até o campo alto. Sabia perfeitamente que ali não era o lugar nem a melhor maneira para se formar uma parceria, mas a teimosia me fez seguir. Queria muito escalar o Toclla, ou ao menos chegar mais perto daquela montanha linda.
Dia seguinte lá fui eu, cargando todo o material para pernoite e para escalada, até corda levei. Custou umas quatro horas pra chegar ao campo alto, a 5100m, um caminho que me pareceu equivaler a subida do Urus (5495m).




Campo alto do Tocllaraju


Por fim, o que já era de se esperar, ninguém das cinco cordadas que estavam lá, todos homens, quis levar uma mulher desconhecida. O que é perfeitamente compreensível. Imagina se alguém ia querer arriscar de não fazer o cume por ter levado uma mulher que nunca viram na vida. O grupo dos franceses, muito simpáticos, disseram que eu até poderia ir com eles mas como eles iam baixar com esquis.... eu não teria como baixar sozinha. Assim foi que fiquei só na vontade.
Não precisando acordar de madrugada, saí da barraca só quando amanheceu. Fiquei ali no campo alto do Toclla até mais tarde curtindo o visual da montanha e acompanhando algumas cordadas que já iam alto pela rota normal. Me impressionava a beleza daquela montanha, especialmente sua face Oeste, uma parede de gelo de 600m, com 60o-80o de inclinação. Quase ninguém escalou essa rota nesta temporada de 2009, que teve bastante nevadas e as condições do gelo não estavam favoráveis naquela parede. Acompanhei ainda a descida de algumas cordadas. Ver os quatro franceses baixando em esquis foi emocionante. Lá pelo meio dia comecei a arrumar as coisas e desci para o vale.




Esquiadores baixando do Tocllaraju


Chegando no base, encontrei minhas amigas Dani e Déa. Contamos nossas aventuras e desventuras e ficamos tomando vinho até altas horas sob um lindo céu estrelado. O próximo plano era subirmos o Ishinca, as três. Mas eis que, no dia seguinte (parece até que virou perseguição), encontrei um guia conhecido de Huaraz. Sua cliente havia passado mal e teve que voltar pra cidade e como ele ficou sabendo que eu gostaria de subir o Toclla me convidou para escalar com ele. Também nos acompanharia um grupo de amigos, três venezolanos, que formavam outra cordada. Eu estava com um pouco de preguiça de subir de novo aquela morena, mas como afinal o que estive buscando no dia anterior acabou por aparecer no meu caminho... resolvi ir.
Lá fui eu de novo, mochilão nas costas, subir o morenão do Toclla. Pelo menos desta vez reduzi o tempo de subida para duas horas e meia. As pernas já estavam mais acostumadas com as morenas.
Caminhando pela morena empinada mas em bom ritmo, íamos curtindo o visual, nos sentíamos reconfortados pelo lindo dia de sol. Fazia bom clima e estávamos animados. Infelizmente estas agradáveis sensações foram interrompidas quando nos aproximávamos do campo alto do Toclla, de onde já se podia avistar mais de perto a face oeste da montanha. Logo encontramos um guia que nos deu a notícia de que havia ocorrido um acidente grave na parede, na rota direta. O acidente ocorreu com uma cordada de três jovens belgas que despencaram uns 400m, parando próximos à rimaya na base da parede. Do acampamento podíamos ver três pontinhos pretos contrastando com o branco da neve, eram os corpos dos escaladores mortos.




Parede Oeste do Tocllaraju


A cena era bastante impressionante, chegar ali para escalar a montanha e deparar-se com esse terrível acontecimento, me causou sensações estranhas e incômodas que me fizeram pensar em muitas coisas.
Sensações estranhas porque a morte abala a moral de qualquer um. Estamos expostos a riscos seja na montanha ou na cidade, afinal, para morrer basta estar vivo, mas ver as pessoas mortas ali tão próximas me fez tomar mais consciência disso e pensei na idéia de poder passar o mesmo comigo.
Sensações incômodas porque apesar de haver três pessoas mortas na parede, nosso grupo não mudaria os planos de tentar escalar a montanha. Nada podia fazer por aqueles que já estavam mortos mas me sentia um pouco mórbida por ainda querer escalar. Esses pensamentos se instalaram na minha mente e colocaram em questão minhas idéias sobre escalar montanhas, sobre minha relação com a montanha e com os outros.
Nos recolhemos em nossas barracas no final daquele dia, que terminava com o céu limpo e sem vento. O plano era sair naquela madrugada.
Deitada na barraca tentando dormir ou ao menos descansar, quando começou a soprar um vento que foi crescendo, tornando-se cada vez mais intenso até começar a sacudir as lonas da barraca e dobrar suas varetas nas rajadas mais fortes. Esse vento, que começou às onze da noite, não parou mais, a noite toda açoitou o acampamento e a montanha, tornando aquela noite ainda mais insólita. Pensamentos surreais me acudiam a mente: esse vento furioso, deve ser a alma dos mortos sobrevolando as montanhas, reclamando seu destino... As almas povoariam aquela montanha enquanto seus corpos estivessem lá.
A virada no tempo frustrou nossa escalada, mas acabou me dando certo alívio. A montanha afinal decidiu por nós se deveríamos escalá-la ou não.
Ao amanhecer o vento continuava forte e agora com nevisco. Um grupo de resgate recém chegava de Huaraz para resgatar os corpos dos escaladores mortos. Uma dura tarefa intensificada ainda mais pelo mau clima. Ao nosso grupo nada mais restava que desarmar acampamento e baixar.




Quebrada Ishinca, vista do campo alto do Tocllaraju


No campo base, quando o grupo de resgate baixou, conversei com um dos guias que contou que o acidente provavelmente foi causado por imprudência, excesso de auto confiança dos escaladores, que escalaram em simultâneo e não colocaram seguros. Um grande risco que acabou custando a vida dos três. O ambiente de alta montanha já é por si só um ambiente que potencializa riscos, onde todo cuidado é pouco e por mais experiência e domínio das técnicas, nunca se pode subestimar a montanha. Imprevistos podem acontecer, coisas que não dependem do escalador, então porque aumentar os riscos?
Mais uma vez não tive a chance nem de tentar escalar essa montanha. Mas como saldo acabei ficando especialista no campo alto do Toclla. ;o) E afinal, sempre há o que se aprender na montanha, seja numa tentativa frustrada, num cume bem sucedido, ou simplesmente estando lá.





E o tempo fechou no Tocllaraju


Uma visita ao Alpamayo

Ainda na fase de planejamento da viagem ao Peru, pesquisando sobre montanhas e rotas da Cordillera Blanca, me interessou bastante o nevado Quitaraju, um seis mil que fica na Quebrada Santa Cruz/Arhueycocha e que possui uma rota pela aresta oeste, de nível PD. Uma aresta linda e afilada, que proporciona uma vista magnífica dos dois lados da montanha e fica de cara pro Alpamayo, montanha ainda mais impressionante.
A possibilidade de uma investida no Quitaraju surgiu após ter conhecido o grupo de venezolanos na Quebrada Ishinca. Eles tinham planos de ir à Quebrada Santa Cruz com expedição comercial para escalar o Alpamayo pela rota francesa, com guia e cordas fixas. Um deles também tinha vontade de escalar a aresta do Quitaraju. Tendo esse objetivo em comum, me convidaram para participar da expedição ao Alpamayo e, após essa investida, formaríamos uma cordada para escalar o Quitaraju.
Hesitei um pouco quanto a escalar o Alpamayo com cordas fixas, pois esse não é o estilo que gosto de escalar e em certos aspectos sou contra as expedições deste tipo pelos muitos problemas que algumas delas causam ao ambiente de montanha. No entanto, eu estava irresistivelmente atraída pela oportunidade de ganhar alguma experiência e de conhecer a rota daquela montanha que um dia quero escalar de forma independente. Não dava para perder aquela oportunidade.
Então, um dia depois de termos baixado da Quebrada Ishinca, adentramos a Quebrada Santa Cruz, bem ao norte da Cordillera Blanca. As quebradas são vales de origem glaciar que dão acesso aos nevados. Comumente ladeados por enormes paredões de granito, esses profundos vales foram moldados por antigos glaciares, que recuaram e deram forma aquelas paisagens. A Quebrada Santa Cruz é uma das mais deslumbrantes, um cenário que se pode apreciar durante a longa aproximação ao Alpamayo/Quitaraju.




Quebrada Santa Cruz, nevado Taulliraju ao fundo





Subindo para o campo base Alpamayo/Quitaraju


Fizemos essa aproximação em quatro dias. No primeiro dia, após uma caminhada de quatro horas por terreno relativamente plano, chegamos ao primeiro local de acampamento, que chama-se Llamacorral. No segundo dia dormimos no campo base, a 4000m de altitude e que tem uma vista esplêndida do Artesonraju e da encosta leste do Quitaraju e do Alpamayo. No terceiro dia passamos a noite no campo morena, a 4600m e a cerca de três horas do campo base. Três dias muito tranquilos e de completo desfrute.




Artesonraju, visto do campo base





Encosta leste do Alpamayo, vista do campo base





Campo morena


No quarto dia finalmente entramos no glaciar e aí começou a verdadeira emoção de estar na alta montanha. Do campo morena até o campo alto são cerca de quatro horas de caminhada no glaciar, cruzando algumas gretas. O trecho final são uns 60ms com 30o-45o de inclinação, e aí chega-se ao colo Quitaraju/Alpamayo.




Galera subindo para o campo alto




Nosso grupo, subindo para o campo alto




Acampamento alto, no colo entre Alpamayo e Quitaraju


Chegando no colo, segundo fotos e informações, tem-se uma vista alucinante da parede sudoeste do Alpamayo e da face norte do Quitaraju. O acampamento fica entre essas duas impressionantes montanhas, a 5400m de altitude. Mas quando chegamos aí o tempo estava completamente fechado e a vista que tivemos foi de uma massa de nuvens densa e branca encobrindo tudo. O clima permaneceu assim durante toda a estadia no campo alto, privando-nos de qualquer vista das montanhas. Mesmo assim era emocionante estar naquele lugar.



Nosso acampamento no glaciar do Alpamayo


O plano era acordar a uma hora da madrugada, então, assim que entardeceu nos recolhemos em nossas barracas para descansar. Conforme combinado, a uma hora da manhã tomamos algo caliente e em seguida caminhamos em direção a parede, para a base da rota francesa, o que levou cerca de uma hora. Três membros do grupo não puderam prosseguir pois passaram mal e retiraram-se antes de entrar na parede. Fomos então eu, Raul, o guia e o assistente. A rota já estava equipada com cordas fixas em toda sua extensão de 400m, com reuniões a cada 60m feitas com estacas e abalakovs, tornando a escalada absolutamente simples e fácil, porém exigente fisicamente. A rota possui inclinação constante de uns 75o, e a última cordada é mais empinada, uns 85o-90o. Poderia ter usado um jumar se quisesse, mas preferi escalar com dois piolets técnicos e um tibloc era o que me dava segurança na corda fixa (a solteira também ia na corda como backup). A cada parada só tinha que mudar o sistema para a próxima corda. Com as luvas duplas essa era a única tarefa que demorava um pouquinho. Escalamos os 400m em um tirón de duas horas, chegando no cume, a 5947m, pouco antes das cinco da manhã, sem vista nenhuma pois além de estar totalmente escuro haviam muitas nuvens.



Raul e eu no cume do Alpamayo


A baixada também foi simples, eu e Raul rapelávamos na frente e os guias vinham recolhendo as cordas. Durante a descida encontramos várias cordadas subindo, inclusive um outro grupo de umas doze pessoas que também escalavam por cordas fixas em uma linha bem ao lado da nossa. Alguns pedaços de gelo começaram a cair em nossas cabeças quando estávamos já mais abaixo dessas cordadas, demonstrando como pode ser perigoso escalar em uma rota abarrotada de gente.
As sete da manhã já estávamos de volta no acampamento. O clima continuaria fechado por mais alguns dias então acabamos desistindo de encarar o Quitaraju e começamos a fazer o caminho inverso na quebrada Santa Cruz.



Baixando do colo Alpamayo/Quitaraju




De volta ao campo base, vista leste do Quitaraju e Alpamayo





Regressando a Cashapampa


Bom, eu não tive qualquer vista das montanhas lá em cima e também não pude escalar o Quitaraju, mas pude desfrutar o puro prazer de escalar 400m de gelo, numa montanha maravilhosa, num lugar maravilhoso. Um presente dos Andes que me deixou muito feliz!

Luana Hudler.

6 comentários:

Anônimo disse...

Pod cre Lu parabéns não li o relato por falta de tempo mas vou ler e depois quero saber por menores dessa trip.
Regi

Daniel J.Casas, Joinville/SC disse...

Puta que Pariuuuuuuuu....

Mandou bem pacas, isso já lhe disse pessoalmente acompanhado de um abrazo fuerte, mas lendo esse relato fiquei emocionado!!!
Muito bem escrito, principalmente, quando fala de seus medos, anseios e a forma de entender as montanhas da vida!

É isso aí suerte amiga!!!!!!
Dani

Anônimo disse...

Muito bom meninas!!!!
Com toda certeza as atividades que as "Escaladoras do Sul" vem desenvolvendo merecem ser parabenizadas, tanto pelas belas escaladas que estão se propondo em realizar, bem como o material fotográfico e os textos produzidos.
Seguramente é uma grande contribuição para o montanhismo brasileiro. Por ser um amigo tão próximo e compartilhar das idéias que povoam suas mentes, tenho certeza que ainda virão incontáveis aventuras para engrandecer ainda mais suas almas e também este blog.
Desejo muitas felicidades e muitas montanhas em seu caminho.
Edu Pedro.

Unknown disse...

Valeu parceiros, pelo apoio, pelo incentivo, pelas conversas esclarecedoras. Vocês fazem parte dessas histórias, acompanhando as aventuras das Escaladoras do Sul, de perto ou de longe, mas sempre nos dando força. Valeu!!
Lu.

Davi Augusto Marski Filho disse...

adorei os relatos ! de verdade ! por sinal a "vibe" de vocês era muito alto astral ! abraços !

Carol Cristofolini disse...

E aii Luana! trabalhei contigo na equipe do Inventário Florestal, lembra? hehe PARABÉNS pra vcs, muito massaaa!!! beijãoo, Carol