sábado, 18 de abril de 2009

Sonho não se sonha só


Sonhos de aventura, sonhos de montanhas. É muito bom quando surgem oportunidades e pessoas que possibilitem irmos em direção aos nossos sonhos.
Quando Andrea idealizou o grupo Escaladoras do Sul, surgiu a oportunidade de realizar um desses sonhos. Formar uma parceria com outras mulheres aventureiras para escalar em picos incríveis. Seria algo bem especial.

Mas inesperadamente, surgiu uma outra oportunidade também imperdível. Conhecer um lugar espetacular de nosso planeta e que se tornou sonho desde que ouvi falar dele: o Parque Nacional Los Glaciares, na Argentina.

A possibilidade de estar perto das fabulosas torres de granito de El Chaltén, de comprovar o que todos falam sobre seu clima instável, de sentir na pele o incansável vento patagônico.... me causou euforia mas também indecisão. Ora, justo agora que se formava a parceria com as Escaladoras do Sul? Estava diante de duas oportunidades alucinantes, e teria que fazer uma escolha...

Ao mesmo tempo, Dani também teve a possibilidade de viajar e conhecer lugares fantásticos, como Cochamó e Los Arenales!

Diante de tantas oportunidades acabamos dividindo a equipe e seguindo roteiros diferentes. Andrea e Simone seguiram o plano inicial. Viajaram juntas e escalaram muuito no Frey, várias vias em cordada feminina! Uma grande inspiração para as Escaladoras do Sul darem continuidade ao que elas começaram. Eu e Dani seguimos outros rumos, mas também trouxemos novidades e informações para compartilhar com nossas amigas.

Foi assim que acabei conhecendo as belezas e a força da natureza de um pedacinho do sul patagônico. Tive o grande privilégio de escalar uma de suas montanhas e de realizar uma caminhada alucinante sobre o gelo continental! Contarei um pouco dessas experiências que pude trazer para o grupo, na próxima postagem.

Luana.

Conhecendo o Gelo Continental Patagônico

Viajar de ônibus para o sul da Argentina seguramente não é a forma mais confortável, afinal, levam-se cerca de três dias de Joinville a El Chaltén. Para quem compra passagem em cima da hora, o ônibus é uma opção um pouco mais barata que o avião, mas a grande vantagem mesmo é poder ir conhecendo um pouco da incrível paisagem deste país andino.

Assim, Eduardo Pedro e eu, Luana Hudler, partimos da calorosa Joinville, no dia 9 de janeiro, de ônibus, e sempre de ônibus chegamos em El Chaltén no dia 12/01/09.
A chegada, num final de tarde de céu limpo, foi bem marcante. Da estrada, ainda longe, as agulhas de granito despontam no horizonte, contrastando com as imensas mesetas que acabamos de cruzar no semidesértico patagônico. O peito foi se enchendo de uma euforia, de emoção mesmo ao ir chegando cada vez mais perto daquelas respeitáveis montanhas rodeadas por glaciares. Ao sair do ônibus, já no povoado de El Chaltén, o vento nos deu suas boas-vindas.




Chegando em El Chaltén


Os primeiros dias foram de mau tempo e aproveitamos para conhecer o pueblo, as pessoas, pegar informações, monitorar o tempo e traçar estratégias. Uma janela de bom tempo ainda iria demorar alguns dias. Ao invés de ficar esperando pelo bom tempo sem fazer nada, decidimos então fazer algo que planejáramos deixar para o final da viagem: uma travessia nos gelos continentais do sul patagônico.

Saímos da cidade com tempo ruim e adentramos o vale do Rio Elétrico rumo ao Paso Marconi, que dá acesso ao campo de gelo sul. O percurso inclui trechos de bosques, muitas morenas, a gelada travessia do Rio Pollone, mais morenas e por fim a subida do Glaciar Marconi, parte mais íngreme deste trajeto. Levamos três dias e meio para chegar ao Paso Marconi, durante os quais pudemos viver uma experiência intensa com o vento patagônico. Um vento fortíssimo que vez em quando nos derrubava no chão com fortes empurrões, dificultando a progressão e proporcionando visões surreais, como a água do Lago Eléctrico e das cachoeiras jorrando para cima!


Lago Eléctrico

No quarto dia alcançamos finalmente o Paso Marconi, mas creio que com bom tempo poderíamos ter chego ali em um dia e meio. Como o tempo continuava tormentoso, decidimos esperar a melhora no Refúgio Gorra Blanca, ao norte do Paso Marconi. O vento sacudiu o refúgio durante a noite toda e quase todo o dia seguinte. No final da tarde porém, uma surpresa. O céu limpou completamente e pudemos admirar a impressionante paisagem que havia em nosso entorno. O Cerro Gorra Blanca, com suas espessas encostas nevadas, os imensos e brancos maciços montanhosos que despontam a Oeste, o vasto platô de gelo que se perde nos horizontes. Em direção sul, as agulhas dos cordões Torre e Fitz Roy contrastando com o céu de fim de tarde. Um grande privilégio poder admirar toda essa beleza e sentir a magnitude daquele lugar.


Glaciar Gorra Blanca

No dia seguinte cruzamos todo o branco platô, do Refúgio Gorra Blanca até a Laguna Ferrari. Durante a caminhada percebíamos o isolamento daquele mundo de gelo e de silêncio, a paisagem intocável, protegida pelas barreiras cordilheiranas. Gigantescos glaciares deslizam pelas ladeiras das montanhas, tomando formas que revelam a vida própria desses rios de gelo. Parávamos por uns momentos para apreciar a vista da face oeste do Cordão Torre.

Prosseguimos pelo gelo firme em ritmo forte, contornando muitas gretas, até chegar nas bordas do imenso Glaciar Viedma. Pela morena, bordeamos o glaciar e em determinada altura podíamos contemplar aquela imensidão de gelo em movimento, que parte desde o horizonte, esparramando-se sobre o vale escavado pelo próprio glaciar.
O dia intenso de caminhada e de paisagens terminou na Laguna Ferrari, um pouco antes do Paso del Viento, onde passamos uma noite tranquila, sem vento e sem nuvens.
Dia seguinte fomos erguendo acampamento sem pressa, assimilando tudo o que já tínhamos visto e caminhado. Subimos lentamente a morena até o Paso del Viento. Havia ainda uma longa caminhada até El Chaltén. Descemos então as imensas morenas que bordeiam o Glaciar Túnel. Após uma tirolesa curta e bem aérea sobre o turbulento Río Túnel, passamos pela Laguna Toro e finalmente entramos em contato com o mundo verde novamente, deixando para trás aquele cenário completamente mineral. Seguimos mais algumas horas por bosques e prados até o povoado.

Chegamos de volta ao acampamento Confluencia, na entrada da cidade, ao final do dia, cansados e felizes pela “realização de um sonho antigo”, como disse meu parceiro Eduardo.
Um sonho antigo que nasceu aqui nas serras de Joinville, onde moramos. Um lugar totalmente diferente da patagônia é claro, mas o lugar onde nossa história com a montanha começou. Em El Chaltén, assim como em outras regiões dos Andes, as caminhadas de aproximação são bem longas, algumas com consideráveis desníveis. As muitas andanças pela Serra do Mar, que tem desníveis muitas vezes superiores a mil metros, proporcionaram bastante preparo para nossas pernas. Por isso, mesmo estando em terras longínquas, lembro sempre do lugar onde aprendemos e treinamos, adquirindo experiência e preparo para aventurar-nos em outras paragens.



Luana Hudler

Escalada na Aguja Guillaumet


Face Norte da Ag. Guillhaumet


Após a caminhada no gelo continental, nossa primeira experiência em El Chaltén, Edu e eu já estávamos nos preparando para a próxima empreitada. Só tínhamos que aguardar pela janela de bom tempo.

Assim, novamente adentramos o vale do Rio Eléctrico, desta vez para tentar escalar a Aguja Guillaumet, no extremo norte do cordão Fitz Roy. Queríamos escalar a rota Fonrouge-Comesaña, no pilar norte da agulha.
Caminhamos por bosques de lengas durante cerca de duas horas até chegar em Piedra del Fraille, um refúgio em propriedade particular. Um pouco antes deste refúgio, à esquerda, subimos a morena que leva a Piedra Negra, acampamento base da Ag. Guillaumet. São cerca de mil metros de desnível que consumiram 3hs de pesada caminhada. Chegando em Piedra Negra, haviam muitas barracas e muitas cordadas que também tentariam escalar a rota que havíamos elegido. Assim, decidimos tentar escalar outra via, a Espolón Dorado, na face Nordeste.

Saímos do bivaque às 6hs do dia seguinte, chegando na base da via após duas horas. Uma boa subida, o primeiro trecho em glaciar e depois uma morena íngreme e com muita rocha solta. O dia estava bastante frio, com algumas nuvens. Após 150ms de escalada mista, uma experiência nova para nós, chegamos na base de várias fissuras que estavam com muito gelo em início de descongelamento, molhando toda a rocha. Não era pra menos. Aquele era o segundo dia após quase uma semana nevando na montanha. Ainda não havia passado tempo suficiente para “limpar” o gelo das fissuras e poder escalar sem equipamento de gelo, que era o nosso caso. Eduardo tentou escalar uma das fissuras mas estava congelada. Tampouco me animei para tentar. Decidimos rapelar, com uma certa tristeza por não poder continuar a escalada. Mas a caminhada de volta ao acampamento foi tempo suficiente para espantar a frustração. Muitas vezes se aprende muito mais nas tentativas do que alcançando um cume. Aquele tipo de escalada ainda é bastante peculiar para nós e cada vez que provamos novos terrenos estamos aprendendo e se acostumando com o novo. Aprendendo sobre a montanha, sobre a escalada, sobre nós mesmos.



Escalada na via Espolón Dorado, Ag. Guillhaumet

Luana Hudler.

Regalo Patagônico - Escalada na Aguja De la S

Face Leste da Aguja De la S (foto de Edu RC)

Dois dias depois de tentar escalar a Guillaumet, de volta em Chaltén, conhecemos o Eduardo R. da Costa, um carioca muito gente fina que estava buscando parceria para escalar a Aguja De la S, que era justo outro de nossos objetivos. Assim formamos uma cordada de três, bem sintonizada, e seguimos rumo a De la S, no extremo sul do Cordão Fitz Roy.

Após 4hs de caminhada chegamos no acampamento Río Blanco, exclusivo para escaladores. Montamos aí um acampamento base e no dia seguinte subimos para o bivaque um pouco mais leves. De Río Blanco até o bivaque são mais umas duas horas, bordeando a bonita Laguna Sucia, com um visual alucinante do Paso Superior. Chegando no bivaque ainda fizemos um reconhecimento do caminho até o glaciar, uma morena sem trilhas nem pircas, um pouco difícil de se orientar.

Acordamos às 5h30, e pouco antes de sairmos chega ao bivaque uma cordada de um japonês e um norte-americano, vindo da agulha Saint Exupery. Eles haviam escalado a rota Buscaini, na gigante face sul da agulha, numa empreitada de 26hs. Nossa empreitada na De la S também nos esperava e começamos a aproximação até a base da agulha. Em cerca de 40min chegamos na base do glaciar, e caminhamos sobre ele mais uma hora e meia até chegar na base da via Austríaca, na face leste. O primeiro terço da rota original é escalada por um neveiro a 35/40º com 150m de extensão. A neve estava bastante blanda, afundando os pés até o joelho e sem possibilidade de proteger. Escalamos então apenas uma cordada pelo neveiro. Superamos a rimaya, que estava se decompondo, e prosseguimos por rocha e pequenos trechos de neveiros até atingirmos a base do grande diedro de 150m. Dali pra frente foi só desfrutar daquele belo granito.

Aproximação à Ag. de La S (Foto de Eduardo Pedro)




Escalando na Ag. de La S (Foto de Eduardo Rodrigues da Costa)



Após o bonito diedro, chegamos na aresta norte. Mais 150 ms de parede por um sistema de fendas de rocha bastante abrasiva, as fendas meio abertas e arredondadas, algumas proteções um pouco duvidosas. Mas a escalada era relativamente fácil e prosseguimos sem problemas até o cume.

Aresta Norte da Ag. De la S

Chegar ao cume foi um verdadeiro presente, uma vista maravilhosa e emocionante do isolado vale do Cordão Torre e suas imponentes agulhas. Claro que aquele momento foi desfrutado rapidamente e logo já demos início à descida, os inúmeros rapéis até chegar no chão novamente. Os últimos rapéis já fizemos no escuro, algumas transversais e trechos de neveiros, experimentando a tensão que provoca uma situação de perigo. Graças aos deuses patagônicos deu tudo certo, a corda não engatou nenhuma vez e chegamos no glaciar aliviados. Havia ainda a caminhada pelo glaciar e no escuro tudo demora mais. Depois de uma perdidinha na morena, chegamos no bivaque por volta das 3hs da manhã, cansados, mas com uma sensação maravilhosa de satisfação. O vento, guardião dessas selvagens torres de granito, nos deu a chance de estar pendurados em suas paredes por algumas horas e estávamos repletos de alegria e gratidão por esse verdadeiro regalo patagônico.



Cume da Ag. de la S (foto de Edu RC)
Cume da Ag. de la S, com vista para o Cordão Torre

Luana Hudler.